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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Areia nos Dentes

areia nos dentes

Areia nos Dentes, primeiro romance do porto alegrense Antônio Xerxenesky, nos foi dado de presente numa noite chuvosa do mês de agosto, devidamente autografado por seu autor. Aqueles que tiveram a oportunidade de ver um livro autografado por Antônio já se depararam com sugestivos desenhos: o meu exemplar vem com um polvo sorridente denominado “Cthulhu feliz”, para que não houvessem dúvidas de sua procedência.

Levei para casa, como promessa, um livro de faroeste com zumbis. Weird Western com experimentações pós-modernas e fanfarronices metalinguísticas. Um pastiche que não faz você rolar de rir, mas deixa no ar um clima de absurdo. Ok, o livro não ficou a dever nenhum destes elementos. Mas se olharem a fundo, com atenção, sem piscar uma só vez, vão notar que Areia nos Dentes é uma história sobre o porão dos Marlowes.

Martin Ramirez, o filho bom e corajoso do clã dos Ramirez, arrisca sua vida numa noite trêmula tentando descobrir o que raios havia no porão dos Marlowes. Uma bala súbita, vinda só Deus sabe de onde, quase o atinge. Martin foge, corre pelas areias de Mavrak, chega são e salvo em casa. Na manhã seguinte, é encontrado morto com uma bala cravejada nos intestinos. Assim começa a história contada por um filosófico senhor mexicano chamado Juan, a história de seus antepassados.

O livro segue alternando hora para o velho mexicano, seus copos de tequila e sua inquietação diante da distancia afetiva do filho, hora para a história dos Ramirez e dos Marlowes, envolvendo intrigas e duelos em Mavrak, mulheres desinibidas, um xerife forasteiro e alguns mortos-vivos. Assim como Juan, o leitor percebe não se tratar apenas de um faroeste excêntrico, e sim uma história sobre pais e filhos. Sobre o medo do novo (as terríveis metralhadoras que habitariam o porão dos Marlowes ou o computador que corrompe parte do texto de Juan com um vírus?) e o medo na noite.

Ficamos sem saber o que há de tão misterioso no indevido porão, assim como não sabemos quem atirou em Martin e nem com quantos homens Vienna dormiu enquanto seu namorado estava viajando. Um pacto foi quebrado: aquele que, em letras miúdas, obriga o narrador a não deixar pontos sem nó e, ao final da história, colocar tudo em pratos limpos. O porão dos Marlowes permanece escuro como a noite, para que os leitores possam “preenchê-lo com os recantos mais escuros de suas próprias almas".

Saiba como adquirir o livro aqui.

CARA CAROLINA ,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas pelo
Unicentro Belas Artes

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Breve pós-cobertura da 32º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

O momento já veio e já passou. Mas como a intenção aqui não é simplesmente dar o serviço, vamos ver o que podemos tirar de mais proveitoso da 32º Mostra Internacional de Cinema.

A Mostra, que já está em sua 32º edição, é um momento celebrado por muitos em São Paulo por diversos motivos. Para mim, o primeiro deles é bastante óbvio: por um curto período de tempo, filmes do mundo todo são trazidos para São Paulo. Isso mesmo, do mundo todo. São filmes que nunca chegarão aqui em outro momento e dificilmente você verá circulando novamente. Além destes, há os filmes que estrearão no circuito mais a frente. Para os mais ávidos, esta é a oportunidade de vê-los antes de todo mundo.

Depois de uma maratona de encaixes, filas e mais filas e correrias, consegui ver alguns dos filmes que queria. Destaco primeiramente os que trazem algo que dialoga com alguns interesses do Fabulário e outras minhas: o não-óbvio, fronteiriço, "os mares nunca dantes navegados" (se é que isso pode existir) do fantástico. Vamos a eles:


Fronteira da Alvorada, de Philippe GarrelA Fronteira da Alvorada: o cineasta francês Philippe Garrel faz um filme de muitas faces, em que se destacam as referências à nouvelle vague e ao expressionismo alemão, trazendo também o elemento fantástico. O protagonista François é um fotógrafo que se apaixona por uma atriz com rosto de quase-diva, Carole. O relacionamento dos dois acaba não dando lá muito certo e a mocinha vai parar num manicômio. Após este momento, o filme parece tomar outros rumos. Um tanto perturbado, François se vê de frente a um acontecimento sobrenatural, sofrendo assim de um sentimento Todoroviano:
a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural". Interessante observar que, embora peculiares, os momentos fantásticos - que beiram o delírio, mas ao final revelam ao espectador sua autenticidade de forma quase alegórica - encaixam-se perfeitamente num roteiro predominantemente realista.

Palermo Shooting, do diretor Win WendersPalermo Shooting: O mais novo filme do alemão Win Wenders foi apontado pela crítica especializada como sendo também o pior. De Wenders entendo muito pouco, mas de fato os clichês estão lá, a olho nu. Porém, trazer como referência tão direta os filmes Depois daquele Beijo, de Antonini e o Sétimo Selo, de Bergman é algo no mínimo curioso. Mais curioso que isto é o fato deste filme, assim como o Fronteira da Alvorada, ter como protagonista um fotógrafo. Finn - muito bem sucedido na sua carreira internacional no mundo das artes e da moda - após passar por uma experiência de quase-morte, viaja para Palermo, onde passa a ser perseguido por um misterioso atirador de flechas. Em Depois daquele Beijo o protagonista do filme é um fotógrafo e a fotografia, a "essência do trabalho" nas palavras de Wenders, é o assunto. Em O Sétimo Selo, o protagonista joga xadrez com a morte, que mesmo perdendo o jogo, continua a persegui-lo. Segundo Wenders, a preocupação com a passagem do tempo, a chegada da velhice e, conseqüentemente, o encontro com a morte é o maior tabu no cinema e que talvez, pela temática "ofensiva", o filme tenha sido tão criticado em Cannes. O encontro do protagonista com a morte é um tanto didático, mas representa também um claro acerto de contas.

Duska, de Jos StelingDuska: Jos Steling é conhecido por trazer a tona personagens atípicos, silenciosos, à parte do mundo, como em O Holandês Voador. Neste, o diretor holandês nos faz enfrentar o irritante Duska, um homem atrapalhado (e folgado) que só vem empacar a vida de outro homem (também um tanto atrapalhado), crítico de cinema solitário. Duska é um personagem que está no território do estranho. As ações e escolhas dele e de seu anfitrião (Duska se instala na casa do pobre crítico) não podem ser explicadas pela lógica comum. Não chegam a beirar o absurdo, mas ainda estão longe do real. O filme se move nos silêncios. E o final é esquisitíssimo. Conclusão: se houver a oportunidade de ver, não perca.

Festa da Menina Morta, estréia de Mateus Nachtergaele na direçãoA Festa da Menina Morta: o filme marca a estréia como diretor e roteirista do brasileiro Matheus Nachtergaele, já reconhecido ator de teatro e cinema. Numa comunidade ribeirinha do Amazonas ocorre a Festa da Menina Morta, evento religioso que relembra um suposto milagre ocorrido à 20 anos atrás com o protagonista Santinho. Esta história, porém, se revela aos poucos e não chega a se completar com clareza. O filme segue cercado nesta atmosfera de crendice e certo naturalismo exacerbado, até que a fronteira entre o real, a alucinação e o fantástico se nubla num dos momentos mais ricos do filme. Longe de ser uma crítica a religiosidade brasileira, o filme fica na fronteira entre o retrato fiel e o olhar direcionado. Como jé era esperado, confrontos morais e ousadia no uso da linguagem do cinema pedem um espectador atento, sem pressa - e nem vontade - de chegar a vereditos.


Vi outros filmes especialmente bons nesta mostra que também valem ser lembrados:

Vicky Cristina Barcelona, o acerto de Woody AllenVicky Christina Barcelona: novo filme de Woody Allen conta (literalmente) a história de duas amigas que vão tirar férias em Barcelona. Lá conhecem um clássico latino caliente que, por alguns instantes, parece mudar os rumos da vida de ambas, embora a entonação de voz de um narrador oculto permaneça igualmente sóbria e indiferente. O filme tem um sintonia finíssima e mostra que depois dos insossos Macht Point e Scoop, Woody Allen chegou lá.

Cinzas do Passado Redux, de Wong Kar WayCinzas do Passado Redux: filme remontado, refinalizado graficamente e reduzido do original de 1995 de Wong Kar-Wai. Com enredo fragmentado e intrincado, o filme narra um ano da vida de um misterioso espadachim que vai morar no deserto após a mulher que ele amava ter se casado com seu irmão. Outros personagens igualmente misteriosos vão se somando à história, tendo sempre como ponto em comum alguma relação com este primeiro personagem: um homem e uma mulher que dividem um mesmo corpo; um espadachim quase cego que deseja voltar a sua terra natal; um homem que, após tomar um vinho mágico, perde a memória. Ao desenrolar da história, as peças vão se encaixando e o espectador percebe que o enredo, aparentemente simples, possui muitas faces e arestas.

CARA CAROLINA ,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas pelo
Unicentro Belas Artes

terça-feira, 18 de março de 2008

Boca do Inferno.com #1

Estivemos, discretamente, no lançamento da HQ Boca do Inferno.com, que aconteceu na livraria HQ Mix, praça Rosevelt, logo depois de toda a sorte de teatros e barzinhos e barzinhos-teatro.

Não conhecíamos a livraria ainda, e ela se revelou um ótimo espaço, com lugar para todos os tipos de publicações da banda desenhada (e outros mais) e representando muito bem o "cenário" independente. E o lugar ficou estreito para tanta gente. Lotou... e... bem, o ar condicionado pifou.... Detalhes sórdidos à parte, estavam lá as onipresentes escritoras Giulia Moon e Martha Argel - figuras que, estamos descobrindo, estão em todos os eventos disso que chamam de (lá vai, vou falar) "fandom". (Deu também para comprar uma edição do Jukebox. Quadrinhos de primeira grandeza! desculpem o parênteses).


Agora o Boca do Inferno.com que é bom, esse sim, vale a pena uma conferida. Aliás, uma não: duas. O fenômeno por si só é curioso. Como eu comentei aqui, a coisa começou na internet em 2001 e este ano foi parar no papel, em formato de quadrinhos, por iniciativa da SM Editora - que trouxe vários quadrinhos e de repente, sumiu da internet.

A primeira edição (e espero que não seja a derradeira, contrariando as espectativas de qualquer quadrinho nacional comercial neste mundo de deus) traz quatro HQs e quatro ilustrações muito bacanas. Há também uma coluna sobre cinema de terror, que acaba sendo uma forma de consolidar o que existe tão vastamente no site deles - sem se tornar supérfulo ou desinteressante.

A primeira e última histórias (principalmente a última, da qual retiramos a cena acima), são muito bem acabadas e apresentam um domínio de linguagens já consolidadas dos quadrinhos. Mas não se engane, perspicaz leitor, a segunda história "Coleção de Naturalista" pode aprentar ser mais "fraquinha" ou menos sofisticada. Ela parece fazer parte de uma produção que não usa com potencial a potencialidade dos quadrinhos (falo de um tipo de HQ que poderia não ter desenhos, ou mais raro, que poderia não ter textos... mas tem. Vocês devem conhecer alguns exemplos). Aqui, desenho e texto caminham quase independentes, mas lado a lado. E o que parece uma inabilidade figurativa e uma resolução deprimente revelam, vejam só, uma sensibilidade construtivamuito curiosa. Vejam os insetinhos....

Bem. Ademais, essa história do conde Lopo não tem nada de muito surpreendente. Confirma-se como uma paisagem... algo talvez monótono, mas agradável de se olhar. O mesmo não pode ser dito da terceira história, "Para o horror e além". O excesso de texto só confirma qe não há necessidade dos desenhos. Aqui sim, temos um caso típico de prosa ilustrada: mau uso da linguagem HQ, para quem ainda não percebeu o teor crítica. A impressão ruim é confirmada pela qualidade ruim da imagem (resolução e compactação). Ainda assim, a leitura pode agradar os menos exigentes - e aos mais saudosos por se tratar de uma narrativa "clássica".

Mas não se assuste (pegaram?)... O melhor da edição está sem dúvida na primeira e última histórias. Despretenciosas e até bem humoradas, elas trazem um lado do terror que dá gosto de ler. Os desenhos são bons, a contrução da história clara, a leitura vai que é uma beleza... O tema não pretende superar ou avassalar ninguém. Bom e sútil entretenimento.

Por três reais?! Que sejam 5 pelo correio! Vale cada centavo.

E se pensarmos que esta é primeira... aí que vale mais. Confiar numa equipe como a de Boca do Inferno.com para escrever histórias de terror - de toda a espécie - parece mais que sensato. E a tendência que esta primeira edição aponta não é outra: se o projeto e a intrépida editora SM se mantiverem podemos estar diante de um verdadeiro marco na história do quadrinho nacional.

Sem brincadeira.


LUIZ PIRES,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas no
Unicentro Belas Artes



PS: Olhem só. Nesta onda de quadrinhos de terror, voltei da Fest Comix com -entre outras coisas suculentas - a legendária revista Mephisto: terror negro. Cr$90,00. Vamos ver se eu consigo resenhar aqui em breve.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

O fabuloso imaginário de Terry Gilliam


Dado que eu não consigo resenhar a tempo os filmes que estréiam e que todo mundo já viu, ouviu e falou, sigo na linha de resenhar os filmes que chegam aqui no Brasil com enorme atraso, com baixa distribuição (veja bem, em DVD, no cinema eles nem chegam...) e que, consequentemente, ninguem vê.

Resenhei para o fanzine beta o filme Mirrormask, de Gaiman e McKean. Agora é a vez de Tideland, de Terry Gilliam.

É provavel que “Os Irmãos Grimm” tenha forrado os bolsos de Gilliam o bastante pra que ele partisse para uma produção independente e despretenciosa. David Lynch começou a conceber Veludo Azul durante as filmegens de Duna. Terá ocorrido um caso parecido?

Tideland conta a história de Jeliza-Rose, uma pequena de 10 anos perdida em um ambiente desértico em condições insólitas. A criança cria em sua mente fantasias escapistas que, durante o filme, são transportadas para o mundo real. Some isso às aparições de uma taxidermista macabra e seu irmão lobotomizado e temos uma verdadeira galeria de cenas de um estranho universo infantil.

O filme foi rechaçado pela crítica, quando não simplesmente desconsiderado. Basta dar uma rodada na internet para encontrar fãs de Gilliam profundamente decepcionados, analisando os fatores psicológios que o levaram a conceber um filme tão.... infilmável!

As reclamações são variadas: falta de lógica, não-linearidade da trama, sequência de imagens bem concebidas estéticamente, mas sem solidez e, pra fechar com chave de ouro, “abordagem leviana e imprudente de temáticas chocantes” como pedofilia, necrofilia, terrorismo e drogas.

O mais curioso é o fato de elogiarem Gilliam pelo que mais os incomoda: a teimosia em ultrapassar os cerceamentos comuns do cinema norte-americano. "Grande parte das coisas que perturbaram os espectadores no filme foram trazidas por eles mesmos para a sala do cinema", disse Gilliam em resposta às críticas, acrescentando ainda que basta voltar a pensar como uma criança para o filme tornar-se “pura alegria”. Eu diria que basta se livrar das constantes injeções de moral que levamos pra dentro e pra fora das salas de cinema, os tabus e as amarras sociais. Só uma platéia totalmente anestesiada poderia afirmar que o filme não passa de um codidiano repetitivo de uma criança esquizofrênica.

O fato é que Tideland é um filme inteligente, feito com capricho e cheio de nuances. Os personagens são bem trabalhados e fogem do lugar comum. Como exemplo, Jeff Bridges (Noah, pai de Jeliza) fica quase todo o filme no papel de homem-múmia, o que não o diferencia muito do seu estado anterior de homem dopado. É, enfim, um filme altamente recomendável, mas talvez não para toda a família. Pra quem gosta (e suporta) ver Gilliam em plena forma, aí está uma boa oportunidade.

Dizem ser o cinema uma arte pragmática. Eu ainda acredito que basta haver um homem com boas idéias e uma câmera na mão.

CARA CAROLINA ,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas pelo
Unicentro Belas Artes



quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Resenha do livro “Renascimento – A Lenda do Judeu Errante”, de Sérgio Pereira Couto.

Antes de mais nada, quero pedir desculpas ao Sérgio pela demora em resenhar seu livro que li com muita atenção nas minhas viagens de ônibus da casa pro trabalho de do trabalho pra faculdade e da faculdade pra casa. Sérgio, pronto e gentil, nos enviou pelo correio (e por Sedex!) seu mais recente trabalho e cabe a esta humilde webmaster de e-comercce (daí já criando um vínculo pouco afetuoso com o personagem principal) agradecer pela atenção.

capa do livro Renascimento, a lenda do Judeu ErranteO judeu errante é um personagem milenar. Talvez por isso tenha servido de inspiração e referência para tantos autores em épocas diversas: Borges em seu conto “O Imortal”, Assimov no livro “Asimov´s Guide to the Bible”, na inacabada peça “O Judeu Errante”, do português José Régio. Os exemplos parecem ser infindos. Porém, o mais recente deles parece ser “Renascimento – A Lenda do Judeu Errante”, de Sérgio Pereira Couto.

Jornalista e escritor, Couto parece ter como uma de suas virtudes a queda pelo jornalismo investigativo, aquele em que o repórter vai direto as fontes para angariar informações. Em seus romances (Sociedades Secretas e Investigação Criminal), Couto parece não ter medido esforços para levar sólidas informações aos leitores, sem aqueles deslizes embaraçosos cometidos por quem fala sobre o que não conhece.

Neste último romance, Sérgio associa o espiritismo à lenda do judeu errante – aquele que foi amaldiçoado por Jesus a permanecer na terra até sua segunda vinda -, tendo como plano de fundo a renascença. Mas não pense que a trama ocorre num passado distante. Ao explorar a temática reencarnacionista, Couto faz uso de flash backs, retornos no tempo e viagem astral para contar a história de Roger, um empresário judeu tão contemporâneo poderia ser meu gerente que se vê preso a uma rocambolesca armadilha em que os espíritos, mesmo reencarnados, não se libertam dos assuntos pendentes.

Entrar em maiores detalhes seria boicotar a eficiência com que Couto amarra sua trama complexa, recheada de elementos que vão desde hieróglifos do Egito antigo até extremismo islâmico. Partirei, porém, para uma reflexão –talvez encabida - de âmbito maior. Couto parece saber bem pra quem escreve e em que tempos, posicionamento característico de um escritor maduro e profissional. “Renascimento” adota um ar de contemporaneidade incomoda. Esqueça as bibliotecas empoeiradas. Para obter valiosas informações os personagens vão a cybercafés e consultam o Google, além de contatar informantes pelo Messenger, isto tudo em contraposição aos vilões, que fazem uso das armas sobrenaturais para se comunicar. As referências que constam nas falas das irmãs Klinger são de seriados de TV e o maior passatempo das heroínas é fazer compras. A caracterização dada no início do livro sobre Elizabeth Klinger ser bibliotecária e gostar de assuntos acadêmicos enquanto sua irmã Emile é historiadora e professora substituta na USP acabam não refletindo bem nos hábitos das moças ao decorrer da história. Além de que às vezes é difícil lembrar que Liz é noiva de Roger, de tão independente que é a relação entre os dois. Seria uma características das uniões atuais, que pregam a efemeridade?

O que dizer então da pluralidade religiosa? Na mesma história estão bem delineadas tanto a doutrina espírita quando a católica, al´me do recalcado posicionamento judaico de Roger e a lembrança perene dos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque e de 7 de julho, em Londres. Curioso notar que são os dois freis franciscanos os personagens de maior sincretismo de crenças, referência clara as dicotomias que a Igreja enfrente na atualidade.

Reforçando a crítica ao catolicismo (mais contemporânea, impossível), Couto coloca Savonarola, monge famoso por instituir as fogueiras da vaidade na Itália renascentista, como grande inimigo de Lourenço de Médice, governante de Florença e patrono das artes na renascença. Porém, não foi enfatizado o fato de que além de queimar Boticcelis, Savonarola combatia o luxo e a vaidade tanto da nobreza estadista como da própria Igreja, sustentando um posicionamento de desapego aos bens matérias. Numa história de contornos capitalistas, o monge só poderia ser dos mais malévolos, o tal “Rasputin” do mediterrâneo.

A visão pessimista da Igreja não é novidade no contexto literário ocidental. Quem não se lembra do bispo malfeitor Bispo Manuel Aringarosa e seu discípulo semi-humano Silas em “O Código da Vinci”, de Dan Brown? Couto, de fato, apresenta esta e outras semelhanças com o a obra do best seller norte-americano. Antes de se aventurar pelo romanesco, o autor publicou livros destinados a embasar a leitura der Brown e saciar a sede dos mais aficionados. Couto revisita o universo temático de Brown ao somar o comum ao pitoresco e faz uso de uma escrita fluida o bastante para acompanhar a velocidade da diegese narrativa. Porém, Couto vai mais longe ao incorporar o elemento sobrenatural.

“Renascimento” é daqueles livros que devem ser lidos de uma tacada só. Prender o leitor do começo ao fim, embora tantas transcrições da obra de Kardec – somada a boa memória dos personagens que citam longas passagens do Livro dos Espíritos – irrite um pouco. Como bom jornalista, Couto afirma em entrevista ao site Vampirus que respeita todas as crenças e mantém o distanciamento crítico. Mas acho que, tendo o livro como espelho, a situação é reversiva. Couto escreve como quem não acredita, mas com o coração de quem acredita (ou ao menos de quem se encantou com a literatura de Kardec e a visão confortante que ela traz, em contraposição a tradição de pecados e castigos que insistimos em carregar história à frente). Terá Kardec contabilizado mais um discípulo?

Colaboraram para esta famigerada resenha:
Tadeu Costa Andrade (semi-cristão e quase padre), alguns poucos motoristas menos barbeiros do 175P e muitos motoristas vagarosos do 557C e Dona Maru, minha avó, esta sim insaciável leitora de literatura espírita.

Referências:
Vampirus, Garganta da Serpente e Giz Editorial


CARA CAROLINA ,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas pelo
Unicentro Belas Artes