O momento já veio e já passou. Mas como a intenção aqui não é simplesmente dar o serviço, vamos ver o que podemos tirar de mais proveitoso da 32º Mostra Internacional de Cinema.
A Mostra, que já está em sua 32º edição, é um momento celebrado por muitos em São Paulo por diversos motivos. Para mim, o primeiro deles é bastante óbvio: por um curto período de tempo, filmes do mundo todo são trazidos para São Paulo. Isso mesmo, do mundo todo. São filmes que nunca chegarão aqui em outro momento e dificilmente você verá circulando novamente. Além destes, há os filmes que estrearão no circuito mais a frente. Para os mais ávidos, esta é a oportunidade de vê-los antes de todo mundo.
Depois de uma maratona de encaixes, filas e mais filas e correrias, consegui ver alguns dos filmes que queria. Destaco primeiramente os que trazem algo que dialoga com alguns interesses do Fabulário e outras minhas: o não-óbvio, fronteiriço, "os mares nunca dantes navegados" (se é que isso pode existir) do fantástico. Vamos a eles:
A Fronteira da Alvorada: o cineasta francês Philippe Garrel faz um filme de muitas faces, em que se destacam as referências à nouvelle vague e ao expressionismo alemão, trazendo também o elemento fantástico. O protagonista François é um fotógrafo que se apaixona por uma atriz com rosto de quase-diva, Carole. O relacionamento dos dois acaba não dando lá muito certo e a mocinha vai parar num manicômio. Após este momento, o filme parece tomar outros rumos. Um tanto perturbado, François se vê de frente a um acontecimento sobrenatural, sofrendo assim de um sentimento Todoroviano:
“a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural". Interessante observar que, embora peculiares, os momentos fantásticos - que beiram o delírio, mas ao final revelam ao espectador sua autenticidade de forma quase alegórica - encaixam-se perfeitamente num roteiro predominantemente realista.
Palermo Shooting: O mais novo filme do alemão Win Wenders foi apontado pela crítica especializada como sendo também o pior. De Wenders entendo muito pouco, mas de fato os clichês estão lá, a olho nu. Porém, trazer como referência tão direta os filmes Depois daquele Beijo, de Antonini e o Sétimo Selo, de Bergman é algo no mínimo curioso. Mais curioso que isto é o fato deste filme, assim como o Fronteira da Alvorada, ter como protagonista um fotógrafo. Finn - muito bem sucedido na sua carreira internacional no mundo das artes e da moda - após passar por uma experiência de quase-morte, viaja para Palermo, onde passa a ser perseguido por um misterioso atirador de flechas. Em Depois daquele Beijo o protagonista do filme é um fotógrafo e a fotografia, a "essência do trabalho" nas palavras de Wenders, é o assunto. Em O Sétimo Selo, o protagonista joga xadrez com a morte, que mesmo perdendo o jogo, continua a persegui-lo. Segundo Wenders, a preocupação com a passagem do tempo, a chegada da velhice e, conseqüentemente, o encontro com a morte é o maior tabu no cinema e que talvez, pela temática "ofensiva", o filme tenha sido tão criticado em Cannes. O encontro do protagonista com a morte é um tanto didático, mas representa também um claro acerto de contas.
Duska: Jos Steling é conhecido por trazer a tona personagens atípicos, silenciosos, à parte do mundo, como em O Holandês Voador. Neste, o diretor holandês nos faz enfrentar o irritante Duska, um homem atrapalhado (e folgado) que só vem empacar a vida de outro homem (também um tanto atrapalhado), crítico de cinema solitário. Duska é um personagem que está no território do estranho. As ações e escolhas dele e de seu anfitrião (Duska se instala na casa do pobre crítico) não podem ser explicadas pela lógica comum. Não chegam a beirar o absurdo, mas ainda estão longe do real. O filme se move nos silêncios. E o final é esquisitíssimo. Conclusão: se houver a oportunidade de ver, não perca.
A Festa da Menina Morta: o filme marca a estréia como diretor e roteirista do brasileiro Matheus Nachtergaele, já reconhecido ator de teatro e cinema. Numa comunidade ribeirinha do Amazonas ocorre a Festa da Menina Morta, evento religioso que relembra um suposto milagre ocorrido à 20 anos atrás com o protagonista Santinho. Esta história, porém, se revela aos poucos e não chega a se completar com clareza. O filme segue cercado nesta atmosfera de crendice e certo naturalismo exacerbado, até que a fronteira entre o real, a alucinação e o fantástico se nubla num dos momentos mais ricos do filme. Longe de ser uma crítica a religiosidade brasileira, o filme fica na fronteira entre o retrato fiel e o olhar direcionado. Como jé era esperado, confrontos morais e ousadia no uso da linguagem do cinema pedem um espectador atento, sem pressa - e nem vontade - de chegar a vereditos.
Vi outros filmes especialmente bons nesta mostra que também valem ser lembrados:
Vicky Christina Barcelona: novo filme de Woody Allen conta (literalmente) a história de duas amigas que vão tirar férias em Barcelona. Lá conhecem um clássico latino caliente que, por alguns instantes, parece mudar os rumos da vida de ambas, embora a entonação de voz de um narrador oculto permaneça igualmente sóbria e indiferente. O filme tem um sintonia finíssima e mostra que depois dos insossos Macht Point e Scoop, Woody Allen chegou lá.
Cinzas do Passado Redux: filme remontado, refinalizado graficamente e reduzido do original de 1995 de Wong Kar-Wai. Com enredo fragmentado e intrincado, o filme narra um ano da vida de um misterioso espadachim que vai morar no deserto após a mulher que ele amava ter se casado com seu irmão. Outros personagens igualmente misteriosos vão se somando à história, tendo sempre como ponto em comum alguma relação com este primeiro personagem: um homem e uma mulher que dividem um mesmo corpo; um espadachim quase cego que deseja voltar a sua terra natal; um homem que, após tomar um vinho mágico, perde a memória. Ao desenrolar da história, as peças vão se encaixando e o espectador percebe que o enredo, aparentemente simples, possui muitas faces e arestas.
CARA CAROLINA ,
é webdesigner e estudante
de Artes Plásticas pelo
Unicentro Belas Artes