Antes de mais nada, quero pedir desculpas ao Sérgio pela demora em resenhar seu livro que li com muita atenção nas minhas viagens de ônibus da casa pro trabalho de do trabalho pra faculdade e da faculdade pra casa. Sérgio, pronto e gentil, nos enviou pelo correio (e por Sedex!) seu mais recente trabalho e cabe a esta humilde webmaster de e-comercce (daí já criando um vínculo pouco afetuoso com o personagem principal) agradecer pela atenção.
O judeu errante é um personagem milenar. Talvez por isso tenha servido de inspiração e referência para tantos autores em épocas diversas: Borges em seu conto “O Imortal”, Assimov no livro “Asimov´s Guide to the Bible”, na inacabada peça “O Judeu Errante”, do português José Régio. Os exemplos parecem ser infindos. Porém, o mais recente deles parece ser “Renascimento – A Lenda do Judeu Errante”, de Sérgio Pereira Couto.
Jornalista e escritor, Couto parece ter como uma de suas virtudes a queda pelo jornalismo investigativo, aquele em que o repórter vai direto as fontes para angariar informações. Em seus romances (Sociedades Secretas e Investigação Criminal), Couto parece não ter medido esforços para levar sólidas informações aos leitores, sem aqueles deslizes embaraçosos cometidos por quem fala sobre o que não conhece.
Neste último romance, Sérgio associa o espiritismo à lenda do judeu errante – aquele que foi amaldiçoado por Jesus a permanecer na terra até sua segunda vinda -, tendo como plano de fundo a renascença. Mas não pense que a trama ocorre num passado distante. Ao explorar a temática reencarnacionista, Couto faz uso de flash backs, retornos no tempo e viagem astral para contar a história de Roger, um empresário judeu tão contemporâneo poderia ser meu gerente que se vê preso a uma rocambolesca armadilha em que os espíritos, mesmo reencarnados, não se libertam dos assuntos pendentes.
Entrar em maiores detalhes seria boicotar a eficiência com que Couto amarra sua trama complexa, recheada de elementos que vão desde hieróglifos do Egito antigo até extremismo islâmico. Partirei, porém, para uma reflexão –talvez encabida - de âmbito maior. Couto parece saber bem pra quem escreve e em que tempos, posicionamento característico de um escritor maduro e profissional. “Renascimento” adota um ar de contemporaneidade incomoda. Esqueça as bibliotecas empoeiradas. Para obter valiosas informações os personagens vão a cybercafés e consultam o Google, além de contatar informantes pelo Messenger, isto tudo em contraposição aos vilões, que fazem uso das armas sobrenaturais para se comunicar. As referências que constam nas falas das irmãs Klinger são de seriados de TV e o maior passatempo das heroínas é fazer compras. A caracterização dada no início do livro sobre Elizabeth Klinger ser bibliotecária e gostar de assuntos acadêmicos enquanto sua irmã Emile é historiadora e professora substituta na USP acabam não refletindo bem nos hábitos das moças ao decorrer da história. Além de que às vezes é difícil lembrar que Liz é noiva de Roger, de tão independente que é a relação entre os dois. Seria uma características das uniões atuais, que pregam a efemeridade?
O que dizer então da pluralidade religiosa? Na mesma história estão bem delineadas tanto a doutrina espírita quando a católica, al´me do recalcado posicionamento judaico de Roger e a lembrança perene dos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque e de 7 de julho, em Londres. Curioso notar que são os dois freis franciscanos os personagens de maior sincretismo de crenças, referência clara as dicotomias que a Igreja enfrente na atualidade.
Reforçando a crítica ao catolicismo (mais contemporânea, impossível), Couto coloca Savonarola, monge famoso por instituir as fogueiras da vaidade na Itália renascentista, como grande inimigo de Lourenço de Médice, governante de Florença e patrono das artes na renascença. Porém, não foi enfatizado o fato de que além de queimar Boticcelis, Savonarola combatia o luxo e a vaidade tanto da nobreza estadista como da própria Igreja, sustentando um posicionamento de desapego aos bens matérias. Numa história de contornos capitalistas, o monge só poderia ser dos mais malévolos, o tal “Rasputin” do mediterrâneo.
A visão pessimista da Igreja não é novidade no contexto literário ocidental. Quem não se lembra do bispo malfeitor Bispo Manuel Aringarosa e seu discípulo semi-humano Silas em “O Código da Vinci”, de Dan Brown? Couto, de fato, apresenta esta e outras semelhanças com o a obra do best seller norte-americano. Antes de se aventurar pelo romanesco, o autor publicou livros destinados a embasar a leitura der Brown e saciar a sede dos mais aficionados. Couto revisita o universo temático de Brown ao somar o comum ao pitoresco e faz uso de uma escrita fluida o bastante para acompanhar a velocidade da diegese narrativa. Porém, Couto vai mais longe ao incorporar o elemento sobrenatural.
“Renascimento” é daqueles livros que devem ser lidos de uma tacada só. Prender o leitor do começo ao fim, embora tantas transcrições da obra de Kardec – somada a boa memória dos personagens que citam longas passagens do Livro dos Espíritos – irrite um pouco. Como bom jornalista, Couto afirma em entrevista ao site Vampirus que respeita todas as crenças e mantém o distanciamento crítico. Mas acho que, tendo o livro como espelho, a situação é reversiva. Couto escreve como quem não acredita, mas com o coração de quem acredita (ou ao menos de quem se encantou com a literatura de Kardec e a visão confortante que ela traz, em contraposição a tradição de pecados e castigos que insistimos em carregar história à frente). Terá Kardec contabilizado mais um discípulo?
Colaboraram para esta famigerada resenha:Tadeu Costa Andrade (semi-cristão e quase padre), alguns poucos motoristas menos barbeiros do 175P e muitos motoristas vagarosos do 557C e Dona Maru, minha avó, esta sim insaciável leitora de literatura espírita.