quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Calor
material excedente da Edição Beta


Faltavam apenas 5 minutos para o fim do expediente, mas não pareciam 5, pareciam 500, 500.000. Cada segundo era uma dor tão palpável quanto a dor obturação.
Calma Cláudio... - disse para si mesmo – Você já vai embora... Se não fosse essa merda de calor...

Ele tentava se concentrar em outras coisas, mas a única coisa que chamava sua atenção era a movimentada rua que vislumbrava através da única vidraça visível de seu cubículo, embaçada pela mesma fuligem que fustigava seus poros. Cláudio sabia que lá o calor seria o mesmo e ainda haveria os esbarrões, a claustrofobia e todo o desconforto típico das multidões. Mas lá fora parecia se iniciar um belo poente, daqueles que surgem como uma torrente, uma ducha, que lavam a febre caótica das tardes de inverno pós efeito-estufa. Tudo e todos na rua pareciam sentir isso e espreguiçavam-se, quase como se estivessem voltando à vida. O único lugar que se mantinha indiferente a isso era o escritório que perpetuava o mesmo calor sufocante das 2 da tarde.

Ainda assim, Cláudio permanecia digitando um documento qualquer que ele nem sabia do que se tratava, apenas para tentar abstrair o calor – 3 minutos ainda – grunhiu, olhando o velho relógio de bolso e jogando-o sobre a mesa com raiva. Suas mãos agora não estavam apenas escorregadias, mas também pareciam engorduradas como se estivessem untadas em banha de porco.

Tentando ignorar isso, Cláudio passou a digitar rápido e com raiva, muita raiva. Ele pensava no calor, no chefe ignorante e no tempo que ele perdia dentro daquele antro de puxa-saquismo e competição desleal, realizando serviços que na maioria das vezes só prejudicavam as pessoas normais em prol dos lucros de meia dúzia de figurões semi-etéreos que ele nunca viria a conhecer e se conhecesse, não demonstrariam uma gota de gratidão pelo naco diário de alma que ele depositava em seus cofres.

“Ótimo, tá acabando o martírio”, suspirou Cláudio ao perceber que só faltava um minuto para poder ir embora e decidiu relaxar um pouco. Se espreguiçou, esticou os braços, olhou para o teclado de relance e achou que tinha derrubado algo nele. Que merda de gosma alaranjado é esse em cima do teclado? E esses pedacinhos vermelhos no meio? Quando puxou sua mão de traz da nuca para ver que raios era aquilo, percebeu que aquele liquido pegajoso escorrendo do seu corpo e que agora se espalhava pelo teclado e pela mesa era mais que suor. Horrorizado, teve a confirmação do impossível ao ver um dedo desprender-se de uma mão tão decomposta que não reconhecia como sua.

Em pânico, Cláudio olhou ao redor e percebeu não era só ele; tudo ao seu redor começava a derreter e desmoronar. Mesa, cadeira, paredes do cubículo, tudo estava caindo, sumindo, obliterando-se. Tudo rápido, rápido demais pra pensar em salvação ou em porquês. O computador desligou, assim que começou a esvair-se e ele pode visualizar no reflexo o branco de seu maxilar despregando-se da face. Tentou olhar pela janela em busca de alento e sua única resposta foi um céu tingido de zilhões de tons de vermelho pelo entardecer. Em meio a estrondos abafados e o chapinhar do que ainda era sólido caindo no que já havia derretido, Cláudio viu seu relógio, estranhamente intacto, absurdamente alheio a hecatombe, e num último esforço conseguiu alcançá-lo com o que um dia foi sua mão e proferiu em um misto de insanidade e alivio:

Acabou...




REBUCCI DE MELO ,
trabalha como operador de telemarketing,
cursou Geografia no CEFET-SP e, com sorte,
será estudante de Ciencias Sociais na USP no próximo ano.

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