terça-feira, 4 de setembro de 2007

Processo Criativo e Observação


Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida.


- Charles Baudelaire, “O Pintor da Vida Modena”



Talvez alguém se pergunte porque um tema tão geral para uma primeira postagem de um grupo que diz que tem como foco o fantástico. Talvez essa mesma pessoa ache tudo isso irrelevante e... tenha razão. Por que, mesmo sabendo disso, estou escrevendo esse texto? Tenho visto esse tema incomodar a muitas pessoas há tempo: o problema da criatividade, da inspiração. Quando olhamos o escritor do fantástico, também é de se esperar que ele seja muito perturbado por isso (se não for mais do que os outros), uma vez que sempre lhe é cobrado o novo, o encantador. Se eu quero dar uma solução? Por ora não me sinto capaz. O que gostaria de fazer é agrupar algumas considerações que fiz sobre o assunto e, no mínimo, expô-las para alguns amigos, que só as ouviram de forma esparsa.

Se a inspiração é um acontecimento de natureza misteriosa e repentina que oferece uma idéia para a criação de uma obra de arte, eu não acredito nela, pelo menos não muito. Se eu dependesse dessa inspiração, raramente teria escrito uma linha. Acabei encontrando refúgio em outro procedimento que também acabei nomeando, carinhosamente, inspiração. Mais do que iluminação, ele tem muito mais a ver com observação e, por mais que isso pareça contraditório à criação, realidade.


Pelo menos nós que vivemos na grande cidade, às vezes não nos damos conta do número de coisas que acontece à nossa volta: o incontável número de pessoas que vemos, as diversas frases que ouvimos, os inumeráveis eventos que presenciamos e mesmo a quantidade de coisas levemente inexplicáveis que ignoramos. São tantos rostos, roupas... Nós paramos para pensar o que eles significam? Os carros vêm e vão, nunca param. Para onde será que vão todos eles? As duas coisas poderiam dar ótimas histórias. Uma vez vi um acontecimento bastante estranho: eu estava no metrô com um amigo e, de repente, o condutor disse que alguém havia morrido por ter caído na via. Nunca tinha ouvido isso falado de forma tão direta, fiquei espantado, no entanto, quando olhei em volta, o que mais me admirou foi a indiferença na expressão dos passageiros e ainda mais, a frase de despreocupação do meu amigo quando comentei o fato. Independentemente do que pode ser uma “lição de moral”, tanto o acontecimento quanto a reação das pessoas me deram um conto inteiro.


É uma posição parecida com a de um poeta de que gosto muito, Baudelaire.1 Falando de um artista que admirava, ele louvou sua capacidade de, como uma criança, “se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais”, identificando esse poder com o gênio ( que para ele é como uma infância redescoberta)2. A diferença entre o artista e a criança seria que o primeiro tem suas habilidades desenvolvidas, podendo transformar suas impressões em arte.


Mas alguém poderia dizer: “Observar a realidade: essa não é uma atitude que leva o realismo? Ela não é oposta à fantasia?”. Talvez para responder, eu posso recorrer a Baudelaire novamente: segundo ele, a imaginação ( curiosamente phantasie, em francês) “decompõe toda a criação, e, com os materiais acumulados e dispostos conforme regras das quais não podemos encontrar origem senão no mais profundo da alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo”3. Não vemos muitas vezes na fantasia elementos da realidade desconstruídos e recombinados? Não é o minotauro uma mistura de homem e touro? A esfinge de leão, mulher e águia? Tomar a realidade como ponto de partida não significa imitá-la servilmente. É mais como uma coleta de ingredientes que, juntos, cuidadosamente dosados pelo feiticeiro, formam uma poção.


Essas são mais ou menos as idéias que eu queria expor, que, apesar de estarem muito longe de uma visão definitiva sobre a criatividade, me ajudaram a atingir um pouco dela. Espero que possam servir a mais alguém.

A imagem “http://strictement-confidentiel.com/images/photos/baudelaire.jpg” contém erros e não pode ser exibida.

Baudelaire




TADEU COSTA ANDRADE,
é estudante do curso de
Letras na FFLCH - USP




1Poeta francês do século XIX considerado o fundador da poesia moderna e, também, pai do simbolismo. (artigo na Wikipedia : http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire . Artigo mis vasto, em espanhol: http://es.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire)

2 O texto em questão é “O pintor da vida moderna”, sendo o artista Constantin Guys. O fato de Baudelaire falar de um pintor e não de um escritor não é um problema, uma vez que ele constantemente aproxima as duas artes.
3A afirmação está no texto “Salão de 1859”.

Um comentário:

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom